Pela facilidade com que degustava o patrimônio alheio, logo o forasteiro bode foi promovido a “corrupto”, comenda outorgada por seu novo dono, o tribuno Raymundo Asfora.
“Corrupto”, apesar de toda franquia que recebeu na granja Uiarapuru, nem sempre foi receptivo ao novo dono. Até parecia sentir que vindo de Natal de última hora, doado por um amigo deputado, transformar-se-ia no repasto central do aniversário do domingo.

Um bode imponente, “corrupto” viveu seus últimos dias no pátio da granja, quase consciente de que era hóspede da antecâmara da morte. Falavam nos corredores:
– Amanhã tem aniversário! Providencia o uísque e os cocos!… Chama o “tarimbado” para matar o bode!
“Corrupto” tremia nas bases ao observar a movimentação. Apenas, aparentemente, mostrava-se resignado. Impõe-se uma descrição sobre ele: Nem era gordo nem magro; silencioso. Sempre com um ar de ofendido. Do “Altiplano” de Bodocongó contemplava a cidade estranha, que a sua revelia lhe serviria de túmulo.
Não era peru mas sentia a imolação na véspera. Ainda de pijama, o tribuno recebia a visita do seu fiel escudeiro, Marcelo Marcos. Ele tinha ido levar dois milhões de cruzeiros para que o deputado efetuasse o pagamento dos trabalhadores da sua interminável construção. Os dois começavam a conversar e deixaram o dinheiro sobre o banco do jardim. O “corrupto” sentiu o cheiro do dinheiro mal guardado. Era natural.
Se conseguisse dar fim ao dinheiro, talvez não houvesse festa, deve ter pensado o bicho que, coincidentemente, usava uma coleira tipo colarinho branco. A natureza estava ao seu lado; pelo menos, temporariamente. O vento forte espalhou as cédulas, deixando-as ao alcance do bode para desespero de Asfora e Marcelo, que correram para tentar salvar o dinheiro.
Fiel às tradições, “corrupto” foi com avidez no patrimônio do deputado. Conseguiu comer 8 notas de 50 cruzeiros. Já não estava de graça para o tribuno, passando a custar 400 cruzeiros. Instalou-se a polêmica para os que não viram a proeza.
– Bode comendo dinheiro? – Era a pergunta de ordem de todos quantos foram cientificados do fato.
– Come sim! Chega descia macio o dinheiro, como se fosse dólar – garantia Raymundo Asfora aos incrédulos, com o indispensável aprovo de Marcelo Marcos.
Mas o prestigio de “corruto” cresceu pelas cercanias e logo recebeu a oferta de legenda do PT. Barba não lhe faltava. Quase era colocado numa lista tríplice para reitoria. Comedor de dinheiro alheio, não precisava explicar que foi ainda procurado por vários partidos políticos.
Mas “corrupto” pouco se lixava para a popularidade. Já não aguentava mais aqueles pedidos de pose para fotografias. O tribuno sentido o crescimento da popularidade do hóspede, logo apressou a comemoração do aniversário, que significava, por extensão, a imolação de “Roque Santeiro”, como chegou a ser chamado “Corrupto” pela ala feminina. A fuga não lhe saía da mente. Era a que aspirava.
Num esforço sobrehumano, “corrupto” desvencilhou-se das cordas que lhe prendiam e desceu em disparada o desfiladeiro, sentindo bater no peito o vento revigorante da liberdade. Despertado por trabalhadores em um hotel em construção, o deputado Raymundo Asfora logo acionou uma verdadeira operação de guerra para recapturar o bode. “Todos sabem, pegar “corrupto” é difícil”.
Dado o alarme, em pouco tempo um verdadeiro batalhão descia a ladeira da granja atrás de “corrupto”. A plateia caprina, nas moitas, torcia pelo insucesso da operação. Queria “corrupto” livre. O tribuno, sem muito preparo físico, de pijama e megafone na mão, comandava a operação de dentro do carro.
– Pega “corrupto”! Não deixa “corrupto” escapar!
Cansado e sem conhecer o terreno, logo “corrupto” se viu nas mãos do inimigo. Mas não sem antes realizar outra proeza: conseguiu ser o primeiro e único a tomar banho na inacabada piscina do Centro de Educação Física da FURNe, que fica no pé da serra de Bodocongó. Foi onde “Corrupto”, na fuga, caíra, revelando uma inusitada atração por água. Logo a piscina por milagre estava cheia e “Corrupto” acabou arrastado pelas partes nobres, artifício usado por seus captores para lhe minar a resistência.
Ao contrário do “bode expiatório”, quando os judeus o expulsaram para o deserto depois de terem carregado com todas as iniquidades e maldições de quem queria livrar o povo, “corrupto” era um bode bem-vindo… à mesa.
Não obstante seu charme e proeza, “corrupto” finalmente tombou. Tombou em terra estranha. Sua valentia e astúcia esbarraram na amolada faca do tarimbado advogado Gilberto Chaves. Mesmo imolado, “corrupto” continua mitológico.
Em forma de repasto, conseguiu estar à mesa durante todo o dia de um gostoso domingo. Uns vinte convidados com o apetite de Hamadan, inclusive o próprio e comensais à altura, não conseguiram dar o “corrupto” por vencido. Os pratos foram servidos pela manhã, mas às 20 horas “corrupto” ainda estava “insepulto”, em forma de tira-gosto, mesmo banhado por 12 litros de teacher’s e um botijão de JB. Independente de suas virtudes e sina, “Corrupto” deixou em cada um de nós, um toque de saudades. Ao mestre João Mendes, chegou a despertar-lhe a veia literária, que o imortalizou em versos, sintetizando sua passagem pela granja Uirapuru, desta forma:
“Nem somente de capim
Vive o carneiro hoje em dia
Ontem, quando comia
Verdes relvas num jardim
Deliberou dar um fim
Ao dinheiro mal guardado
Por se sentir doado
Quando ao bom preço faz jus
Comeu OITO OSWALDO CRUZ
No pátio do deputado.”
Agosto / 1985